Ucrânia. Embaixador na ONU viveu há dois anos "o momento mais dramático"

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Em entrevista à Lusa, em Nova Iorque, Kyslytsya defendeu que "não há compatibilidade entre as ações russas e a presença russa no Conselho de Segurança", uma vez que a Rússia "não pertence ao grupo de nações pacíficas".

"A Rússia não deveria estar no Conselho de Segurança, em primeiro lugar. Porque a Rússia viola todos os princípios fundamentais da Carta da ONU. Portanto, não há compatibilidade entre as ações russas e a presença russa no Conselho de Segurança, porque, se abrirmos a Carta das Nações Unidas, os primeiros artigos dizem que uma nação amiga da paz qualifica-se para membro das Nações Unidas e, certamente, a Rússia não pertence ao grupo de nações pacíficas", argumentou.

Com o seu país prestes a completar dois anos sob uma invasão em grande escala pela Rússia, Kyslytsya tem sido o rosto e a voz do descontentamento da Ucrânia nas Nações Unidas, onde, com regularidade, se vê obrigado a enfrentar o seu homólogo russo no salão do Conselho de Segurança.

Na noite de 23 de fevereiro de 2022, em Nova Iorque - madrugada de 24 de fevereiro na Europa -, o salão do Conselho de Segurança era palco da segunda reunião de emergência da semana sobre a iminência de uma invasão russa, com a presença do secretário-geral, António Guterres, que pedia ao Presidente russo, Vladimir Putin, que desse "à paz uma oportunidade".

Contudo, em simultâneo com a reunião e para choque dos diplomatas, Vlamidir Putin anunciava o início de uma "operação militar especial" na Ucrânia, com as tropas russas a avançarem pela fronteira ucraniana e a dispararem mísseis em vários locais.

Os discursos dos embaixadores - de apelos à contenção - rapidamente ficaram obsoleto. Kyslytsya tornou-se o rosto do desalento e, com o semblante visivelmente carregado, confrontou o seu homólogo russo, Vasily Nebenzya, e o próprio Conselho: "É tarde demais, queridos colegas, para falar sobre desescalada. Tarde demais. O Presidente russo declarou guerra. (...) É responsabilidade deste órgão parar a guerra", disse.

Contudo, apesar de admitir que esse foi o momento mais dramático, o diplomata ucraniano confessou à Lusa que "não foi o mais difícil".

"Porque os momentos mais difíceis são quando me sento no Conselho de Segurança e tenho de ouvir a torrente de mentiras tóxicas do enviado de Putin. Uma pessoa chega ao ponto em que realmente só quer sair e tomar um banho, porque elas [as mentiras] são tão nojentas. Eu sei que alguns dos meus colegas estão a chegar ao limite quando ouvem os russos no Conselho de Segurança", contou.

Frequentemente, a missão russa é acusada pelos Estados-membros ocidentais de usar - e abusar - do seu assento permanente do Conselho de Segurança para difundir propaganda.

"Os russos estão a mentir sem rodeios não só sobre a Ucrânia, mas também sobre outras questões. Portanto, esta toxicidade de ter a necessidade e responsabilidade de absorver todas essas mentiras, de responder a essas mentiras, é muito mais difícil do que o momento dramático em que a verdadeira agressão começou", afirmou Kyslytsya.

Para o diplomata, importa refletir e discutir sobre o que acontecerá com a Rússia "depois da derrota militar", uma vez que, historicamente, Moscovo "nunca teve um período de vida democrática" e isso reflete-se, na sua visão, inexistência de uma forte rejeição por parte da população russa à guerra com a Ucrânia.

"A Rússia nunca teve um período de vida democrática. Quero dizer, ter pessoas - como em Portugal ou na Ucrânia ou noutro país - que possam realmente valorizar a liberdade e a democracia...É preciso mais do que uma geração de pessoas que aprendam porque é que devem lutar pela liberdade e pela democracia, porque têm de saber e têm de ter esta experiência de viver num país democrático. A Rússia nunca teve isso", analisou.

"Você realmente acredita que se, mesmo que pressionemos - e, eventualmente, um dia expulsaremos os russos da Ucrânia - até aos limites das fronteiras internacionalmente reconhecidas...você realmente acredita que apenas expulsá-los da Ucrânia fará da Rússia uma nação democrática amiga da paz? Exige muito mais do que isso", sublinhou.

De acordo com Kyslytsya, esse eventual processo exigiria que o povo russo tomasse a decisão de voltar ao início dos anos 1990 e iniciasse um "caminho muito longo" de construção da democracia.

Para o diplomata ucraniano, a Rússia tinha tudo para ser para a Europa aquilo que o Canadá é para os Estados Unidos.

"Quero dizer, a Rússia tinha tudo. No início dos anos 1990, quando a Rússia se tornou um Estado separado, tinha tudo para se tornar o que o Canadá é para os Estados Unidos: um território enorme, recursos naturais ilimitados, pessoas razoavelmente educadas. Poderia ter sido um vizinho muito bem sucedido para a Europa unida, tal como o Canadá é um vizinho muito bem sucedido para os Estados Unidos. Eles perderam esta oportunidade", advogou.

"Há tantas gerações de russos que fizeram parte deste sistema onde os seus cérebros são lavados todos os dias, e é por isso que, até hoje, não vemos realmente uma poderosa rejeição desta guerra por parte da população russa. Mesmo o número de soldados russos mortos na frente [de batalha] não muda essa atitude em relação à guerra", defendeu ainda Kyslytsya, em entrevista à Lusa.

Como exemplo de "produto do sistema que nunca teve um período prolongado de vida democrática", o embaixador ucraniano referiu o representante de Moscovo nas Nações Unidas, Vasily Nebenzya, que não demonstra remorsos, nem capacidade de se afastar da "narrativa russa".

Nebenzya "é um `putinista` `hardcore`, ele não mostra remorsos, não demonstra capacidade de falar fora da caixa da narrativa russa, tem um impacto muito limitado na tomada de decisões e ele não tem acesso a Putin", declarou o embaixador ucraniano, assumindo não manter qualquer tipo de contacto com o seu homólogo além daquele a que o seu cargo obriga durante reuniões de trabalho nas Nações Unidas.

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