Apoio judiciário: advogados ou mártires do sistema

1 mes atrás 66

O artigo do Prof. Miguel Romão, publicado no dia 16 de agosto, no “Diário de Notícias” (DN) sobre o Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais (SADT) apresenta uma visão superficial e, em alguns aspectos, salvo o devido respeito, desinformada sobre a realidade enfrentada pelos Advogados “oficiosos” em Portugal.

Este texto procura informar sobre as dificuldades e as injustiças vividas pelos Advogados “oficiosos”.

Discrepância nos honorários

Começamos por destacar o ponto mais crítico: a discrepância entre o valor mencionado de 50 euros por hora e a realidade dos honorários efetivamente pagos, que são significativamente mais baixos e inadequados para a complexidade do trabalho envolvido.

Por exemplo, de acordo com a tabela de honorários, um advogado oficioso recebe 204 euros por um julgamento em processo-crime, um montante insuficiente e desrespeitoso face à responsabilidade e complexidade do trabalho.

Considerando os 50 euros por hora mencionados no artigo, é uma ilusão absurda acreditar que a defesa num processo-crime pode ser adequadamente preparada em meras quatro horas.

Quem, em plena consciência, acredita que um trabalho de tal complexidade e responsabilidade pode ser comprimido em tão pouco tempo? Na realidade, são necessárias muitas mais horas e esses 50 euros por hora rapidamente se transformam numa quantia irrisória que mal cobre o custo do café tantas vezes necessário para enfrentar as noites em claro.

Na prática, o sistema de Justiça, ao invés de ser financiado totalmente pelo Estado, é sustentado pelo trabalho e recursos dos Advogados, comprometendo a sua dignidade profissional e a qualidade da Justiça oferecida aos cidadãos.

Proletarização e perda de dignidade profissional

Num artigo que escrevi em 2019, destaquei como a falta de atualização da tabela remuneratória e a exigência de que os Advogados adiantem despesas do Estado criam um mecanismo que destrói o caráter liberal da profissão.

Esta situação leva à proletarização dos Advogados inscritos no SADT, aproximando-os da figura de defensores públicos e comprometendo o prestígio da profissão.

A dignidade profissional dos Advogados é afetada à medida que são tratados como meros executores de um serviço subvalorizado, sem a devida compensação financeira e reconhecimento social. O artigo do DN ignora essa dinâmica, perpetuando uma visão simplista e desatualizada.

 Necessidade de uma revisão profunda

Para que o sistema de Justiça funcione de maneira eficaz e justa, é essencial que o debate sobre o acesso ao direito inclua uma reforma profunda das condições de exercício da actividade e da remuneração dos Advogados “oficiosos”.

Essa reforma deve contemplar o pagamento de atos atualmente não remunerados, sessões de julgamento “oferecidas”, despesas realizadas que não são pagas e garantir que o pagamento seja efetuado automaticamente, sem depender de um ato da secretaria judicial.

Não há outra classe profissional que suporte o acesso dos mais carenciados aos serviços que prestam. Os Advogados, com as suas quotas, financiam a gestão administrativa do SADT, garantindo o funcionamento do apoio judiciário. Só o Conselho Regional de Lisboa gasta anualmente perto de meio milhão de euros com o apoio judiciário para ajudar os mais carenciados.

Diferentemente de outras profissões, como médicos, professores ou juízes, os Advogados suportam parcialmente o acesso dos mais carenciados à Justiça, arcam com despesas no âmbito do apoio judiciário que não lhes são reembolsadas e as remunerações auferidas não são atualizadas há cerca de 16 anos.

Justiça como função do Estado

A Justiça é uma função do Estado e não pode ser sustentada às custas dos Advogados, ainda que parcialmente. É uma questão de sociedade e não de classe, e deve ser entendida nesse contexto.

A situação atual, onde os Advogados são obrigados a financiar o acesso ao direito com o seu trabalho, é insustentável e injusta. Além disso, a dignidade profissional dos Advogados é constantemente minada, pois são obrigados a operar em condições que não refletem a importância do seu papel no sistema de Justiça.

O artigo do DN falha no reconhecimento dessa realidade e, ao fazê-lo, perpetua uma imagem do sistema que não pode existe.

Como disse Martin Luther King Jr., “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo o lugar.” É hora de lembrar ao Estado que a situação não é aceitável e deve ser alterada em benefício do próprio sistema de Justiça e da dignidade dos profissionais que nele trabalham.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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